“O Que é Ser Angolano?” Para um Conceito Ontológico de Angolano

 A crença em uma identidade nacional serviu de elemento impulsionador durante a luta de libertação, tendo-se configurado

 A crença em uma identidade nacional serviu de elemento impulsionador durante a luta de libertação, tendo-se configurado como um chamado patriótico para que muitos integrassem um conflito do qual os angolanos saíram vitoriosos em 1975. O presente ensaio, motivado por um repto lançado pelo Centro de Estudos UFOLO para Boa Governação, visa analisar o sujeito angolano do ponto de vista ontológico e tem as suas bases fundamentadas na Antropologia Filosófica, que é basicamente um domínio do conhecimento que busca pela essência do homem, permitindo um diálogo multidisciplinar até mesmo com alguns campos categoriais que não mantém relação directa com a Antropologia. Com efeito, vamos procurar apresentar um conceito longe de qualquer motivação política ou etnocêntrica. Por sua natureza reflexiva e pelas exigências impostas pela própria organização, o método de abordagem ao qual recorremos é o hipotético-dedutivo, admitindo que o “dialético” é a tónica de qualquer reflexão filosófica. Por conseguinte, é preciso ter na devida conta, que se torna muito difícil construir um conceito genérico a partir de individualidades, porquanto não se conceitua o angolano tendo como referência apenas o luandense ou os moradores do Kilamba, por exemplo; porquanto o angolano somos nós, indivíduos circunscritos às 18 províncias e à diáspora, cada um com características específicas, com diferentes estatutos etários e sociais. Por fim, em relação à estrutura do trabalho, em primeiro lugar, apresentaremos uma explicação filosófico-gramatical do sintagma verbal, que é tão-somente o núcleo da pergunta de partida; em seguida, ressaltaremos a importância da literatura e das outras artes para a afirmação da identidade nacional; posteriormente, buscar-se-á o conceito ontológico de “angolano” através de diferentes campos categoriais, colocando ênfase no multiculturalismo como elemento congregador, finalizando-se com uma sugestão que se consubstanciará na negação das purezas étnicas e raciais como factor de uma consciência nacional congregadora.

 A pergunta “O Que é Ser Angolano?” traz na sua cadeia semântica uma perífrase verbal que se resume essencialmente no infinitivo do verbo “ser”. Trata-se de um verbo com bifurcações metafísicas cuja abordagem semântica mereceu a devida atenção de importantes filósofos, designadamente, Aristóteles, Descartes, Hegel, Heidegger, Sartre, etc., cada um, apesar de possíveis similitudes, com abordagens particulares. A abordagem filosófica em torno do “ser” reside entre o idealismo e o materialismo. Interpretando as palavras de Japiassú e Marcondes (2001), o idealismo hegeliano, por exemplo, conceitua o ser por via de uma antonímia que o reduz ao grau zero da existência, ou seja, a nada: “o ser, o imediato indeterminado, é, na realidade, nada, nem mais nem menos que nada”; ao passo que para Aristóteles, o “ser” é entendido como uma substância, isto é, “aquilo que é a coisa”.

 A visão de Hegel resulta de um idealismo que faz lembrar o cepticismo pirrónico, porquanto o que se observa, na verdade, é a fobia de um filósofo que suspende o juízo por força duma falsa premissa, “o imediato indeterminado”, que gera uma conclusão inadequada. Assim, Aristóteles, em comparação a Hegel, estará mais próximo da verdade; no entanto, é preciso perceber que o sintagma “O que é ser?”, para além de remeter “àquilo que a coisa é”, implica um processo, ou seja, a “coisa” em desenvolvimento. É, portanto, sobre esse prisma que procuraremos responder a pergunta de partida – ‘‘O Que é Ser Angolano?’’.

A defesa de uma identidade nacional é um imperativo existencial para quem durante séculos passou por um processo de colonização. A dicotomia “colonizador/colonizado” deu azo ao par antagónico “impostor/reivindicador” e é neste âmbito que começam as primeiras discussões sobre identidade nacional. Trata-se de um debate que saltou das entrelinhas das obras literárias de autores como Agostinho Neto, António Jacinto e Viriato da Cruz e do pacifismo da Antrofilosofia implícita nas abordagens de Mário Pinto de Andrade e símiles para se constituir num chamado para a luta que se impunha. Portanto, para uma melhor abordagem concatenada a esta temática faz-se imprescindível reconhecer os princípios e as acções do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola, pois, o lema “vamos descobrir Angola” viria a transformar-se no maior grito na frente cultural e ideológica, na medida em que, para além de perseguir uma literatura que ignorasse o cânone colonial em prol de uma literatura com identidade própria e que espelhasse as “Angolas” mais longínquas afastando qualquer preconceito, através da Casa dos Estudantes do Império, serviu posteriormente de importante instrumento ideológico para prossecução da Independência Nacional.

 

Convém também destacar conjuntos musicais como os N’gola Ritmos e outros cuja contribuição artística favoreceu igualmente a construção de uma identidade nacional firme. Destaca-se o contributo das artes porque foi através delas que se começou a ganhar uma consciência nacional e descobriu-se que todas as tentativas de se desvanecer o homem africano, que habita nesta circunscrição que hoje tomamos por Angola, falharam. A luta de libertação nacional só se fundamenta nessa consciência de ser, pois, sem ela, seríamos eternos “escravizados”.

O conceito ontológico de “angolano” remete-nos, como já referimos acima, ao exclusivo domínio da Antropologia Filosófica, que obriga a colocar em permanentes diálogos, diferentes campos categoriais, dentre os quais vale ressaltar o Direito, a Sociologia e a Psicologia, sendo que, a Antropologia Filosófica já implica a Antropologia assim como a Filosofia, que por sua vez, integra a Ontologia.

 

A Constituição da República de Angola, no seu número 2 do Artigo 2.º, reconhece a condição do angolano como um ser particular, quando, em matéria de promoção e defesa dos direitos e liberdades fundamentais, garante a promoção e a defesa dos direitos e liberdades fundamentais do homem, quer como “indivíduo quer como membro de grupos sociais organizados”. No âmbito do Direito, responder o que é “ser angolano” não se afigura uma tarefa que exige do pensador argumentos complexos, e, sem delongas, angolano será aquele que, do ponto de vista legal, estabelece um vínculo de nacionalidade com o território angolano por via de um documento exarado pelo Ministério de Justiça (Bilhete de Identidade ou Passaporte). Outrossim, interpretando os números 1, 2 e 3 do Artigo 9.º, dedicado à questão da nacionalidade, angolano será qualquer cidadão nascido em Angola e civilmente registado como angolano, bem como aqueles que, tendo obedecido a todos os critérios legais, requerem a nacionalidade angolana por diversas ordens. Com a independência de Angola, muitos cidadãos nascidos em outros pontos gozaram dessa prerrogativa em razão do envolvimento na Luta de Libertação Nacional. No entanto, hoje, as razões são diversas e rondam entre o plano financeiro e o eventualmente afectivo. Contudo, é preciso perceber que só o critério do Direito não é suficiente para se definir o angolano. Ser angolano, sem desprimor aos órgãos de justiça, vai muito mais além do que a exibição de um documento de identificação porque este pode nem sequer existir. Trata-se de um postulado que provaremos com factos vivenciados por todos os angolanos que já tiveram a oportunidade de circular um pouco pelo país. Sabe-se que nem todo o angolano está integrado dentro do sistema de identificação, ou seja, nem todos têm uma Cédula ou Bilhete de Identidade e ainda assim, quando interpelados por um agente da Polícia Nacional, dá-se-lhes um desconto mesmo havendo em Angola um número considerável de cidadãos de outras nacionalidades. Isto ocorre porque existem uma série de características que permitem identificar o angolano dentro e até mesmo fora do território nacional. Um outro facto ocorreu com uma prima na província de Cabinda que, apesar de ter nascido nessa província, fez toda a vida estudantil na República Democrática do Congo, tendo regressado a Cabinda logo a seguir ao fim do conflito armado em Angola. Certo dia, teve de ser retirada de um camião afecto à Polícia Fronteiriça, no qual iam cidadãos estrangeiros que seriam repatriados para a República Democrática do Congo. Tal facto sucedeu porque existe um conjunto de características que permitem identificar o angolano naquela parcela territorial mesmo se reconhecendo a proximidade fronteiriça. No entanto, convém mais uma vez realçar a importância do documento de identificação nessas situações, porquanto não foram as características endógenas, senão um documento civil que a salvou daquele equívoco. Portanto, ela é angolana porque nasceu em Angola; no entanto, culturalmente e até mesmo linguisticamente ela apresentava a estrutura de uma cidadã congolesa, porquanto não se conseguia comunicar em Português nem em Ibinda.

Por conseguinte, as relações sociais ensinam-nos que a identidade é forjada na interação do sujeito com a sociedade sem que aquele perca a sua essência. Sobre a necessidade de socialização, vários pensadores convergem na ideia segundo a qual o homem é um ser social, tratando-se, na verdade, duma condição que implica integração e interação. A crítica sociológica encerra uma dimensão que tende a remeter exclusivamente para o presente. Todos os indivíduos que participam da sociedade angolana, quer sejam nacionais ou estrangeiros, constituem o núcleo dessa sociedade. Deste ponto de vista, a pergunta “O Que é Ser Angolano?” pressupõe algum envolvimento directo do ser na sociedade. Mediante os factos expostos, se a definição do angolano implica reconhecer a diáspora, o critério sociológico será impotente para compreender ontologicamente o sujeito angolano.

Do ponto de vista psíquico, o angolano será um sujeito que vive o drama do estresse pós-traumático em virtude do longo processo de colonização, de décadas de guerra civil e das diferentes conjunturas socioeconómicas por que o país passou e passa. Qualquer angolano adulto, face a ontologia que perseguimos, é afectado pelo menos por um desses problemas que acabámos de elencar. Deste ponto de vista, o critério do Direito consubstanciado na atribuição da nacionalidade por via do registo civil acaba sendo obliterado na medida em que existem cidadãos que são, à luz da justiça, angolanos e, no entanto, não se vêm afectado por nenhum desses problemas. Convém ressaltar ainda que a máxima segundo a qual “o angolano é um povo pacífico” remete, na verdade, não para uma característica inapta, senão para um resultado provocado pelos traumas aos quais nos referimos. Outrossim, em termos comportamentais, reconhece-se que o angolano é um povo alegre e acolhedor.

Face a nova configuração geo-humana provocada por eventos historicamente conhecidos, devemos destacar o multiculturalismo como um conceito que procura suprimir (reduzir) as assimetrias entre as minorias (étnicas, raciais …) e as sociedades maioritárias através de políticas de integração. Porém, convém ressaltar que o conceito de “minoria” que aqui implicitamente expusemos não encerra uma componente numérica, na medida em que as elites geralmente se apresentam em menor número e ainda assim se sobrepõem às maiorias.

Em nossos dias, o multiculturalismo reflecte indubitavelmente a configuração das sociedades contemporâneas. O reconhecimento deste traço antropofilosófico implica a aceitação imediata do princípio diversidade na unidade, várias vezes defendidos romanticamente por políticos em campanha. Em contrapartida, a não-aceitação do multiculturalismo como princípio de unidade pode constituir um dos factores de variadíssimas tensões sociais e políticas. Ademais, sabe-se que a história universal está repleta de genocídios que se efectivaram por razões étnicas, raciais e religiosas. Ainda neste quesito, em relação a não-aceitação da ideia de multiculturalismo como princípio de unidade na diversidade, se analisarmos racionalmente os 27 anos de guerra civil em Angola (1975-2002), independentemente do envolvimento de forças estrangeiras, notaremos que, embora a ideia de “nacionalismo” viesse explicitada nas suas denominações por via do lexema “nacional”, pelas acções do passado e pelo que hoje ainda representam, a base é essencialmente étnica, embora um dos partidos, no caso o Movimento Popular para a Libertação de Angola, não evidenciasse explicitamente este facto, defendendo ideais supostamente mais liberais e integradoras, que permitiram que na sua frente revolucionária figurassem, diferentemente dos outros históricos (Frente Nacional para Libertação de Angola e União Nacional para Independência Total de Angola), indivíduos de diferentes etnias e raças e triunfasse, sendo o primeiro e o único a dirigir os destinos do país. No entanto, sabe-se que no seio do partido triunfante houveram também fricções com consequências graves derivadas da rejeição do “outro”.

Esta unidade, que é, na verdade, um processo, será mais visível quando se decidir realçar através de práticas coerentes a posição de Agostinho Neto defendida aquando da proclamação da Independência em que sugeria “um vigoroso combate contra o analfabetismo em todo o território nacional”, bem como a promoção e a difusão de “uma educação livre, enraizada na (s) cultura (s) do povo angolano”.

O processo de colonização forçou elos, impôs convivência entre indivíduos que historicamente pertenceram a diferentes reinos, tribos; e, portanto, falavam diferentes línguas e apresentavam algumas práticas culturais diferentes, embora se reconheça os traços comuns que pressupunham um único ponto de partida.

Por conseguinte, quando nos tornámos vítimas de um mesmo opressor, tornámo-nos irmãos, criámos um corpus compacto; apesar das diferenças, a ideia de liberdade transformou-nos em consanguíneos. Todavia, convém ter na devida conta, que aquelas formas de organização político-administrativa pré-coloniais existem apenas como um facto histórico e que as marcas deixadas pelo colonialismo são irreversíveis.

Antropologicamente, a pergunta “O Que é Ser Angolano?” implica o reconhecimento de que Angola é um país multirracial, multicultural, multilingue e a chamada angolanidade se concretizará na diversidade que não viola a unidade. Pois, desse ponto de vista, há que considerar todos esses aspectos para se afastar qualquer ideia de preconceito e eventualmente superioridade étnica. Angolano será, portanto, os Khoi-Khoi, os Sans, os Bantu, os mestiços e finalmente os brancos que, tendo nascido nesse espaço, assumem-se do ponto de vista cultural como angolanos. Portanto, a definição do angolano não se resume exclusivamente a uma pessoa, a um grupo étnico, a uma província, a uma raça, a um partido político.

Do ponto de vista ontológico, e será este ponto que responde a pergunta que se impõe, o angolano é, materialmente, o sujeito que, tendo nascido no território angolano ou tendo como pelo menos um dos progenitores nascido no território angolano, se lhe é outorgado documentalmente o estatuto de cidadão nacional pelo Ministério da Justiça da República de Angola e, no âmbito da sua interacção com o outro, comunica-se em português ou numa das Línguas Nacionais de Angola; apesar da reconhecida singularidade, veicula comportamentos cujo substrato cultural é determinado pela tensão entre a inevitável aculturação resultante do processo de globalização e a combinação harmoniosa das práticas culturais dos diferentes povos que, apesar de habitarem o território angolano, formam um mosaico cultural diversificado.

O actual angolano (e do futuro) é o resultado das mudanças estruturais e institucionais que se vêm operando em território nacional desde o estabelecimento sequencial dos reinos bantu, passando pela administração colonial portuguesa, que teve de ser vencida através da luta, que culminou com a independência nacional e consequentemente com a instauração de diferentes repúblicas segundo critérios politológicos. O projecto de uma verdadeira nação, várias vezes colocado em cheque nas actuais narrativas de ficção cujo corpus constitui, em termos teórico-literários o que o professor Joaquim João Martinho taxou por “Narrativa de Espera”, aquando da sua exposição, no dia 19 de Agosto de 2019, na Feira do Livro e do Disco, com o tema “Tendências do Romance Contemporâneo Angolano”, nas últimas décadas não fracassou. Está, na verdade, a seguir o curso possível. “A Narrativa de Espera” de Joaquim Martinho configura-se como uma teoria que infere que o escritor angolano contemporâneo introduz no pano de fundo da sua narrativa algum desespero e decepção em relação ao fracasso do projecto nação, elencando um conjunto de obras significativas tais como: “Noites de Vigília”, de Boa Ventura Cardoso; “Acácia e os Pássaros”, de Manuel Rui Monteiro; “Pedidos, só no Cemitério”, de Adalberto Luakute; “O Reino das Casuarinas”, de José Luís Mendonça; “Sociedade dos Sonhadores Involuntários”, de José Eduardo Agualusa; e “Se o Passado Não Tivesse Asas”, de Pepetela. Todas essas obras recriam mundos através de personagens que questionam o atrasado prolongado pelo projecto comunidade imaginada angolana.

A construção de uma nação derivada da aglomeração de reinos e tribos unidos por um tipo de tecnologia baseada em crenças de supremacia e, em consequência disso, impingiu hábitos para reinar melhor através de medidas de aculturação agressivas consubstanciadas num tipo de adestramento alicerçado em princípios psicopedagógicos deturpados que levavam grande parte dos nativos[1] a renunciarem as suas crenças e a rejeitarem as suas próprias línguas em favor de uma religião e culturas supostamente superiores implica a destituição de variadíssimos conceitos que perigam a convivência sadia que, a nosso ver, estão na base de muitos insucessos para o país. Somos um país multiétnico, multilingue, multirracial que precisa aproveitar melhor as potencialidades desse universo plural através duma educação inclusiva sem hegemonia de qualquer etnia ou raça e que valoriza as “culturas nacionais”. Em vista do que foi dito, a educação deve ser vista como um elemento de construção e determinação do angolano que persegue a convergência na diversidade.

Em face disso, a escola veicula um currículo que é usado em cadeia nacional e sabe-se que ela influencia no comportamento dos seres. A unidade reside, portanto, na administração de uma educação que integra e prega todas as formas de tolerância. E isto só será possível, sem qualquer utopia, com actos de governação que se concretizem na vida dos angolanos como uma mais-valia. Por fim, face a nossa longa história de miscigenação consubstanciada na inevitabilidade afectiva que propiciou as relações interétnicas e inter-raciais, julgo que o nosso grande erro tem sido a definição de um modelo preciso de identidade nacional tendo como paradigma as características quase que homogéneas de um grupo específico, quando, na verdade, o mais correto é forjar o conceito de identidade angolana partindo da negação do puramente Khoi-Khoi, do puramente San, do puramente Bantu e do puramente Europeu em favor de uma consciência nacional na qual se deve diluir até ao grau zero o conceito de raça bem como o conceito de grupos étnicos.

 

Referências Bibliográficas

Constituição da República de Angola. Imprensa Nacional- EP, Luanda, 2010.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico De Filosofia. Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2001.

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