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Da Teoria dos Quatro Discursos à Ordem do Discurso: interdição da fala em Angola e o discurso político-partidário

Entendemos o discurso como a representação verbal de qualquer pensamento individual ou colectivo. Por conseguinte, a ideia binária da existência de um pensamento individual e de um outro colectivo remete para à Ordem do Discurso foucaulteano, que gravita entre o desejo do sujeito e a vontade das instituições que administram o poder, pois “o discurso está na ordem das leis” (Foucault, 1996, p.7).

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Carvalho (1997) apreende nas obras de Aristóteles uma ideia medular, que, de acordo com seu entendimento, se afigura de suma importância para a compreensão da sua filosofia. A essa ideia denomina Teoria dos Quatro Discursos e entende que, na visão do autor grego, “o discurso humano é uma potência única, que se atualiza de quatro maneiras diversas: a poética, a retórica, a dialética e a analítica (lógica) ”. Consequentemente, tais modalidades discursivas configurariam quatro ciências do discurso, por via das quais “o homem pode, pela palavra, influenciar a mente de outro homem (ou a sua própria) ”.

Segundo Carvalho (Ibidem),

(a) O discurso poético versa sobre o possível , dirigindo-se sobretudo à imaginação, que capta aquilo que ela mesma presume;

 

 (b) O discurso retórico tem por objeto o verossímil  e por meta a produção de uma crença firme  que supõe, para além da mera presunção imaginativa, a anuência da vontade; e o homem influencia a vontade de um outro homem por meio da persuasão, que é uma ação psicológica fundada nas crenças comuns. (…), o discurso retórico deve produzir uma decisão, mostrando que ela é a mais adequada ou conveniente dentro de um determinado quadro de crenças admitidas.

 

(c) O discurso dialético já não se limita a sugerir ou impor uma crença, mas submete as crenças à prova, mediante ensaios e tentativas de traspassá-las por objeções. É o pensamento que vai e vem, por vias transversas, buscando a verdade entre os erros e o erro entre as verdades). O discurso dialético mede enfim, por ensaios e erros, a probabilidade maior ou menor de uma crença ou tese, não segundo sua mera concordância com as crenças comuns, mas segundo as exigências superiores da racionalidade e da informação acurada.

 

(d) O discurso lógico ou analítico, finalmente, partindo sempre de premissas admitidas como indiscutivelmente certas, chega, pelo encadeamento silogístico, à demonstração certa da veracidade das conclusões.

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Na nossa sociedade, o primeiro discurso, o poético, fora do universo artístico, só pode ser assumido, após uma análise dialéctica, em termos metafóricos, como condição pejorativa da retórica política, em sede de devaneios eleitorais que geralmente acompanham os partidos políticos durante este processo.

O discurso político-partidário, no âmbito da teoria dos Quatro Discursos Aristotélicos, figura no discurso retórico, sendo, em Angola, o hegemónico. Desde a Independência Nacional que o discurso dominante é o político (o retórico) e parece-nos utopia, tão cedo haver um eventual domínio dos discursos dialético e lógico, que, em nossa opinião, regeriam qualquer sociedade normal.

Até mais ou menos uma década depois do alcance da paz efectiva, pelo menos a nível interno, o discurso hegemonicamente predominante era o do MPLA. Entretanto, alguns lapsos de governação com profunda repercussão social levaram à descredibilização do discurso dominante e a ascensão do discurso de uma oposição que periodicamente procura extrair a sua fala mais nas acções fracassadas do governo do que no ímpeto de uma retórica própria. É mais fácil falar do que fazer.

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Embora Foucault (1996. p9) nos advirta que “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa”, tomamos, ainda assim, a tolerância como uma prerrogativa constitucional imprescindível ignorada pelos principais partidos políticos. Isso se deve devido a natureza conflituosa do jogo político, que obriga as duas principais forças políticas ( MPLA vs UNITA) a disputarem a Ordem do discurso.

O MPLA, partido-estado, detém o discurso oficial. A UNITA, principal partido na oposição, contrapõe o discurso oficial apontando as fissuras da governação. Ambos procuram impor a sua lógica discursiva sobre o povo, resumindo-se nisso o antagonismo entre ambos.

A Constituição da República de Angola, na primeira parte do nº 1. do Artigo 40.º , estabelece que  “todos têm o direito de exprimir, divulgar e compartilhar livremente os seus pensamentos, as suas ideias e opiniões, pela palavra, imagem ou qualquer outro meio, bem como o direito”. Reforça no nº 2 do mesmo artigo que “ o exercício dos direitos e liberdades constantes do número anterior não pode ser impedido nem limitado por qualquer tipo ou forma de censura”.

Entretanto, hoje, os sujeitos perderam a possibilidade de discursar livremente. A sua fala é predeterminada pela ideologia. Todos pregam a intolerância. Um elogio a uma atitude positiva do governo é repudiada por militantes da oposição. O repúdio a uma acção negativa do governo conecta-nos imediatamente à oposição. Quer-se com isso dizer, que o discurso dialéctico e o discurso lógico são combatidos quando ferem expectativas partidárias e que hoje, segundo a lógica discursiva partidária, não há apartidários. O indivíduo pertence a este ou àquele partido.     

A intolerância, na sociedade angolana, atingiu proporções tão alarmantes que quem, de forma autónoma, faz o uso da fala perde a sua condição de cidadão e vê-se na obrigação de hastear uma bandeira partidária. Todo o discurso sobre a evolução da socidade é entendido como uma escolha política.

Nos últimos anos, a ideia de povo tem sido obliterada e substituída pela ideia de militância partidária, ou seja, praticamente já não há povo, apenas militantes. Os conflitos político-partidários constituem factores de segregação social, impõem falas, anulam o discurso autónomo. Na esteira de Foucault (1996, p.9), à par da sexualidade, a política é, em nossos dias, a região “onde a grade é mais cerrada, onde os buracos negros se multiplicam “, ou seja, é um lugar de intolerâncias. E todos os espaços de produção de discurso dão-nos estas provas. Enquanto o discurso político-partidário imperar, não haverá progresso. O progresso vem da dialéctica que prega a tolerância e da lógica que empresta racionalidade às acções. Os outros dois discursos, o poético e o retórico, são importantes, mas não podem ser os predominantes. O primeiro gera devaneios; o segundo, sofismas. São meros artifícios decorativos.

Referência Bibliográficas

Carvalho, O. (1997). Aristóteles em Nova Perspectiva. Rio, Topbooks.

Foucault, M. (1996). A Ordem do Discurso. Trad. : Sampaio, L. F. A. LOYOLA, São Paulo, Brasil.

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