O título deste artigo configura, à partida, um paradoxo, na medida em que, implicitamente, convoca duas realidades (tradição e modernidade) antagónicas que
induziram a um reducionismo da simploque entre Natureza e Cultura, ou seja, duas realidades inseparáveis, como se pode verificar na fotografia que motivou este estudo e no nosso dia-a-dia, dependendo da maneira como olhamos para as coisas .
Nesse trabalho, tal como Ramos (2009), entendemos a fotografia “como uma expressão artística” e toda obra de arte como uma construção humana, que, para além da disciplina artística que a acomoda em termos teóricos e analíticos, pode ser avaliada sob um viés de vários domínios científicos. Assim, para este trabalho, elegemos a fotografia do poeta Gino Sacramento, a qual interpretaremos à luz da Antropofilosofia.
A fotografia de Sacramento é uma obra de arte que nasceu de uma performance artística e surge num contexto de reivindicação social resultante da excessiva aglomeração de resíduos sólidos em lugares públicos, em que os citadinos da capital, Luanda, reclamam sobretudo através da arte da fotografia, tendo havido mesmo um grupo de activistas que criou uma página onde vários intervenientes das Redes Sociais publicam fotografias com amontoados de lixos por trás de sujeitos bem apresentados, nos termos daquilo que a sociedade consagra culturalmente como “à rigor”. Nestes termos, a fotografia é assim encarada como uma forma de reivindicação social mais contundente e de maior visibilidade em relação às outras artes.
A primeira grande questão remete para a dimensão da cultura, que cria uma natureza de ser, ou seja, uma forma de estar, que é naturalmente cultural. Os cidadãos podem evitar colocar lixo nas bermas ou em outros locais públicos, existindo vários procedimentos paliativos para atenuar esse aglomerado. Todavia, o problema é que há uma ordem estabelecida, consubstanciada num contrato social e cultural entre a lei e cidadão, em que este deposita o lixo pagando uma taxa; e aquele recolhe por via de instituições que ele mesmo contrata para o efeito, facto que se tem revelado ineficaz.
A imagem de Gino Sacramento encerra um inventário de informações acerca da realidade da Capital de Angola e uma narrativa milenar de como as culturas humanas procuraram ser hegemónicas, destruindo a natureza e como esta resiste até hoje.
O acto de destruição implica, na verdade, sobretudo para as sociedades tidas como modernas e tecnologicamente avançadas, uma separação e superação inequívoca entre natureza, sociedade e cultura. Cá, entre nós, sobretudo, na capital, Luanda, por essa maior predominância de infraestruturas em relação aos “espaços verdes” há uma clara tendência de se designar o “outro” como sendo “ o do mato”, sobretudo aqueles que não vêm das provinciais do litoral, ou seja, a cultura citadina estereotipa tudo o que não entra na sua ordem supostamente moderna.
A fotografia foi feita com um telemóvel de marca Androide e apresenta uma resolução de imagem que nos permite descrevê-la com a maior exatidão possível. Há nela a imagem onírica de vegetação derrubada construída pela memória, na medida em que, hipoteticamente, se pode dizer que toda esta terra agora preenchida de lixo-humano já foi preenchida por vegetação; imagens de árvores, agora reais, transformadas em postes de alta tensão, atravessados por cabos elétricos; ao fundo, vê-se as construções precárias de uma sociedade assimétrica, de casas de chapas e de blocos sem respeitarem os critérios actuais de urbanismo, o que é cultural entre nós, talvez por nossa morfologia africana de aproximação ao outro ou apenas por uma questão de extrema pobreza; por cima de outra árvore derrubada está sentado o homem, simulando escrever um poema; e, sobrevoando a atmosfera poluída, as cegonhas, aves não-domesticáveis, demonstrando o estado de hibridismo a que Bruno Latour se refere em Nem todos fomos modernos. A grande questão seria: quem invadiu o espaço do outro? Invasão ou coexistência natural?
Lévi-strauss (1982, p. 41) observou que “de todos os princípios propostos pelos precursores da sociologia nenhum sem dúvida foi repudiado com tanta firmeza quanto o que diz respeito à distinção entre estado de natureza e estado de sociedade” e, procurando elucidar os defensores da teoria do homos natural, sentencia que “não se pode, fazer referência sem contradição a uma fase da evolução da humanidade durante a qual esta, na ausência de toda organização social, nem por isso tivesse deixado de desenvolver formas de atividade que são parte integrante da cultura” (idem). Quer-se com isso dizer que, ao transformar o meio, o homem sempre produziu cultura.
Para Lévi-Strauss (1982), a origem do fenómeno social estaria na passagem da natureza para a cultura e a oposição entre o natural e o cultural tem um valor meramente metodológico. Uma abstracção que não se pode transformar num dualismo que nos coloca num estado de cegueira conceptual. Em Angola, este processo de transição foi radicalmente imposto pelo colonizador, porquanto, a fronteira entre as sociedades humanas e a natureza propriamente dita era uma linha ténue e pouco significativa. Com o homem europeu forjou-se o que se chamou de civilização, que implicava a destruição sistemática do espaço natural e consequentemente o cultural, o processo que continua até aos nossos dias. Facto que nos permite postular que as culturas humanas transformam-se pela acção humana sobre a natureza. O asfalto e as cidades urbanizadas impõem comportamentos aos indivíduos. A ideia de horta, por exemplo, só pode ser pensada em espaços em que o terreno favorece a prática. Que nomes não receberia um sujeito que ousasse criar uma horta nos jardins da Centralidade do Kilamaba?
A acção cultural do homem sobre a natureza por vezes tem consequências devastadoras. Os estados de desflorestação do Zango, por exemplo, é apontado por especialistas na matéria, como a razão das altas temperaturas nesse espaço. A construção de várias habitações sem a redefinição do curso normal das águas que derivam das quedas pluviométricas através de construção de uma rede de esgoto eficaz, tem levado a vários cenários de inundações. Quando chove, nos lugares onde o homem não interveio ainda, as águas conhecem o seu curso natural e desembocam geralmente num rio ou formam um lago natural.
A desvinculação entre natureza e cultura dá-se por força das barreiras epistemológicas criadas pelo monismo que gerou o binarismo entre ciências naturais e ciências humanas, em que, por exemplo, Biologia e Antropologia se excluíam quando, na verdade, se complementam. O processo de evolução da espécie humana pode ser explicado sob um viés antropológico e biológico, porque o metabolismo ocorreu, segundo a História, muito por força de práticas culturais sistemáticas e contínuas que propiciaram a evolução física do homem até ao estágio homossapiens. Essa verdade epistemológica sobre a interdisciplinaridade entre campos categoriais tidos como incomunicáveis rompe dialecticamente com a polarização entre Ciências Naturais e Ciências Humanas. Contudo, é importante referir que essa multidisciplinaridade não abala a existência de campos categoriais considerados fechados. Na verdade, os campos categoriais, embora determinem objectos específicos, podem oferecer ferramentas para explicação de fenómenos que são transversais. Mendes & Nóbrega (2004, p. 126), “até os anos de 1950, a biologia restringia-se à fisiologia, uma vez que se mantinha fechada para o universo físico-químico, consequentemente, fechada para o fenómeno social”.
Felipe Süssekind (2018, p. 236) enfatiza que é “bem conhecido o facto de que a antropologia, em suas vertentes clássicas, se caracteriza por estabelecer uma grande divisão entre natureza e cultura, a qual inclui a demarcação de diversas oposições complementares: corpo e alma, ambiente e civilização, facto e valor, animal e humano, entre outras”.
Ingold (2000) apud Süssekind (2018, p. 239) defende que a “oposição entre a natureza e cultura é seguida pelo contraste entre o moderno e o tradicional, sendo este último par tratado em termos de sistemas de valores e o primeiro em termos de sistemas de fatos”. “A natureza compreende (engloba, possibilita e em certa medida determina) a cultura; esta é parte e uma certa modalidade de expressão da natureza, (Lima,1998, p.3)”.
“Desse modo, em vez de ser considerada em posição antagónica à natureza, a cultura emerge da natureza e retroage sobre ela. Natureza e cultura, apesar de serem conceitos diferenciados, comunicam-se sem oposições” (Mendes; Nóbrega, 2004, p. 130). Isto explica a coexistência entre o que se designou por homens e não-homens na fotografia em análise. O homem destruiu parte da natureza para construir uma cidade historicamente conhecida por Luanda. Deixou alguns espaços verdes exíguos, cada vez menos abundantes. Entretanto, a cidade continua a ser habitada por elementos que não entram naquilo que seria a ordem estipulada. Homens na cidade e animais na mata, permitindo-se apenas o convívio com animais domesticáveis. Outro problema mais cultural do que natural. Todo o animal pode ser domesticável, adestrado, mas é uma habilidade de grupos sociais muito diminuto. Na fotografia , vê-se um bando de cegonhas a voarem sobre a cabeça do homem.
A cegonha não entra na ordem da domesticação. É, deste ponto de vista, um elemento perdido, pois, a biologia ensina-nos que o seu habitat são locais como campos abertos, margens de lagos e lagoas, zonas pantanosas, prados húmidos, várzeas, pântanos, etc. Entretanto, com a suposta separação entre o homem e a natureza, a Cegonha, um elemento que entraria na ordem dos animais selvagens, fruto do dualismo entre animais domésticos e animais selvagens, passou a ter também as cidades como seu habitat, sobretudo povoando lugares em que águas paradas e resíduos sólidos formam um ambiente nauseabundo como se pode verificar na fotografia de Gino Sacramento. As sociedades culturais são híbridas, em termos latourianos, e existem dentro da natureza, por isso são invadidos por elementos os quais se vêm na obrigação de expulsar. Esses elementos entram na ordem das pragas e devem ser radicalmente combatidos por sua condição de agentes patogénicos (ratos, baratas, moscas, mosquitos, etc.).
Para Derrida (2002), a noção de animal resulta da contra-produção da ideia de humanidade no pensamento moderno, remetendo sempre a uma ausência ou falta daquilo que caracteriza o humano: razão, linguagem, etc.
Nos últimos trinta anos, aproximadamente, como vimos, tanto as discussões antropológicas sobre colectivos indígenas quanto aquelas voltadas para os campos da ciência e da técnica têm revelado ligações cada vez mais intrincadas entre humanos e não humanos. Os sentidos do animal, seu estatuto e lugar passaram, desde então, a ser revistos nos debates teóricos da antropologia a partir de um questionamento amplo sobre a separação moderna entre os domínios da natureza e da cultura, ou do sujeito e do objeto (Süssekind, 2018, p. 245).
A ideia da separação das sociedades e a natureza está na base de muitas atitudes ignorantes desencadeadas pelo homem. Por exemplo, se todos tivessem a noção que a terra é um lugar natural, não deixariam sobre ela amontoados de lixos que se podem verificar nessa fotografia e em vários lugares da cidade capital. É por demais sabido que a produção exagerada de lixo sem nenhum tratamento está entre as principais razões da poluição e degradação do solo e, entre as consequências, há o desequilíbrio ecológico que condiciona a vida de outros seres viventes e do próprio homem. Como resposta paliativa por parte dos cidadãos que vivem nos arredores, adoptam-se medidas como a queimada, agravando um quadro ambiental já enfermo.
À guisa de conclusão, postula-se que natureza, cultura e sociedade são estruturas inseparáveis e, nesse sentido, e no que se refere às ideias canonizadas pela antropologia, segundo Süssekind (2018,p. 240) “ao longo do tempo, a ordem da natureza pode ser definida como uma espécie de suporte material para os projetos, universos conceituais e organizações sociais humanos”. O próprio homem que rejeita a natureza é um ser biológico e ao mesmo tempo um individuo social, como sustentaria Lévi-Strauss (1982). O acto de dar à luz é natural, a maneira como se dá à luz é cultural. A necessidade de se alimentar é natural, o modo como nos alimentamos e o que nos alimentamos resulta de um processo de seleção cultural.
Referências
Derrida, J. (2002). O animal que logo sou. São Paulo, UNESP.
Interseções[Rio de Janeiro] v. 20 n. 1, p. 236-254, jun. 2018 – SÜSSEKIND, Natureza
e Cultura: Sentidos da diversidade.
Latour, B.(2005 ). Jamais Fomos Modernos – Ensaios de Antropologia Simétrica. São
Paulo,Editora 34.
Lévi-strauss ,C. (1990) . O pensamento selvagem.Campinas, Papirus
_______ (2013). Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem.
Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac
Naify. p. 45-55.
_______ (1982) As Estruturas elementares do parentesco.tradução de Mariano
Ferreira. Petrópolis, Vozes, 1982
Lima, T. S. (1998). Para uma teoria etnográfica da distinção natureza e cultura na cosmologia juruna. XXIIº Encontro Anual da ANPOCS GT Etnologia Indígena (Sessão: Formas de Sociabilidade e Filosofias Indígenas da Alteridade).Coordenação: Dominique Gallois & Denise Fajardo.
Mendes, M. I. B. S. ; Nóbrega, T. P.(2014). Corpo, natureza e cultura: contribuições para a educação. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Programa de PósGraduação em Educação. Revista Brasileira de Educação. Set /Out /Nov /Dez 2004 Nº 27.
Ramos, M. M. (2009). Fotografia e arte: demarcando fronteiras. In: Contemporânea, Sorocaba, n.12, p. 129-142, 2009