Tradutologia e Teoria da Tradução

(A busca pela terminologia e a necessidade de Especialização)

tradutologia-ban

Tal como a Literatura que, enquanto arte sempre esteve entre as actividades humanas e precedeu os estudos literários, o exercício de tradução – uma actividade que, segundo Martins (2010, p.59), remonta há mais de três mil anos – é também anterior aos Estudos da Tradução, um ramo do saber que se autonomizou recentemente graças à intensa actividade teórico-filosófica desenvolvida no século XX por estudiosos como Susan Bassnett, André Lefevere, Theo Hermans, Gideon Toury, dentre outros. O artigo de referência de James S. Holmes, de 1972, intitulado O nome e a natureza dos estudos de tradução é também de extrema importância para a afirmação dos estudos de tradução, pois, exigia a “criação de uma disciplina distinta com seu próprio sistema de classificação”.

A afirmação de uma ciência pressupõe conflitos e rupturas epistemológicas. Até a sua autonomia como disciplina, os estudos da tradução gravitavam entre a Linguística e a Literatura Comparada. Todavia, mesmo depois de se legitimar como disciplina por mérito próprio, levanta-se um outro debate dialéctico de proporções terminológicas, consubstanciada na busca por uma designação adequada. Por força disso, conhecem-se designações como Ciência da Tradução, Estudos Tradutológicos, Estudos da Tradução, Tradução, Teoria da Tradução, etc.

Por conseguinte, de todas as expressões apresentadas, opta-se aqui por Tradutologia, na medida em que as restantes se nos afiguram vagas. Além disso, há uma explicação racional e simples para Tradutologia. Ela forma-se da fusão do lexema Tradução + o sufixo logia, elemento de composição de palavras que, como é sabido, indica o estudo detalhado sobre determinado fenómeno. Outrossim, convém referir também que Tradução deriva do latim traductĭo, -ōnis, cujo significado primário, segundo Marie-Hélène Paret Passos(2011, p.71), no seu livro intitulado Da crítica genética à tradução literária: Uma interdisciplinaridade, é o de travessia, acção de fazer passar, ao passo que o sufixo logia deriva, por sua vez, do grego lógos, que, neste caso, nos dá a ideia de palavra, explicação + -ia, sufixo que, para esse exercício, tem o sentido de ciência[1]. Dito isto, Tradutologia será um campo do conhecimento humano que congrega um conjunto de saberes inerentes à fenomenologia da tradução.

A Tradutologia[2] é um campo categorial aberto que se expande, abarcando um conjunto de conceitos ou postulações doutrinárias, elaboradas por estudiosos com diferentes orientações teóricas: teólogos, filósofos, teóricos literários, linguistas, filólogos, semiólogos, culturalistas etc.; cada um deles, confinado à sua zona de conforto, postula, a partir daí, proposições que não poucas vezes desembocam em doxografia[3].

Com vista a evitar fundamentos teóricos que resultem hipostasiados[4], torna-se imprescindível, primeiramente, identificar os objectos ou materiais que constituem o campo categorial da ciência com a qual nos vamos relacionar e saber que tipo de comportamento devemos adoptar face a esses objectos ou materiais para uma melhor abordagem do fenómeno a ser observado. O campo categorial é a Tradutologia, que fruto da interdisciplinaridade das ciências humanas exige conceitos de outras áreas para uma fundamentação mais rigorosa dos diferentes fenómenos resultantes da prática da tradução. Mas isso não significa que qualquer postulado, sobretudo de outros campos categoriais, mesmo os mais afins, se concretizem efectivamente como teoria da tradução. 

No âmbito da tradução, debatemo-nos com diferentes factos ou fenómenos, ou seja, há uma pluralidade de materiais passíveis de serem estudados e que ultrapassam, até certo ponto, o domínio daquela que foi instituída como a Disciplina, no caso, a Teoria da Tradução, equivocadamente apresentada como sinónima de Tradutologia.

[1]in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscteiul.pt/consultorio/perguntas/patologia/9698 [consultado em 04-06-2020]

[2]Disciplina que estuda a tradução e os seus aspectos teóricos, técnicos e metodológico“tradutologia”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [emlinha],https://dicionario.priberam.org/tradutologia [consultado em 27-05-2020].

 

[3] Doxografia é todo o saber ou conhecimento que resulta referido, citado ou isolado acriticamente em um passado histórico, ou em um presente descritivo irrelevante como tal presente. No âmbito da literatura, a doxografia conduz a interpretações insulares, históricas, acríticas, afastadas do presente, distantes de toda incidência no mundo contemporâneo. (Maestro, 20015)

 

[4]Relativo à hipostasia que é definida, nos termos do dicionário de Filosofia, como o equívoco cognitivo, de percepção falsa caracterizado pela atribuição de existência concreta e objectiva (existência substancial) a determinada realidade fictícia, abstracta ou meramente restrita à incorporalidade do pensamento humano.

[1]in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscteiul.pt/consultorio/perguntas/patologia/9698 [consultado em 04-06-2020]

[1]Disciplina que estuda a tradução e os seus aspectos teóricos, técnicos e metodológico“tradutologia”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [emlinha],https://dicionario.priberam.org/tradutologia [consultado em 27-05-2020].

 

[1] Doxografia é todo o saber ou conhecimento que resulta referido, citado ou isolado acriticamente em um passado histórico, ou em um presente descritivo irrelevante como tal presente. No âmbito da literatura, a doxografia conduz a interpretações insulares, históricas, acríticas, afastadas do presente, distantes de toda incidência no mundo contemporâneo. (Maestro, 20015)

 

[1]Relativo à hipostasia que é definida, nos termos do dicionário de Filosofia, como o equívoco cognitivo, de percepção falsa caracterizado pela atribuição de existência concreta e objectiva (existência substancial) a determinada realidade fictícia, abstracta ou meramente restrita à incorporalidade do pensamento humano.

A Teoria da Tradução resulta do imperativo dialéctico que obriga as ciências a se especializarem. Queremos com isto dizer que nenhuma ciência se ocupa de todos os fenómenos e que, por vezes, elas se expandem ao ponto de darem origem a outros campos categoriais. Como esta separação leva tempo e pede abordagens profundas, a Teoria da tradução tem sido confundida como um facto de natureza filológica – portanto, fossilizada – residindo ambiguamente entre os estudos literários e a linguística até se tornar uma disciplina por mérito próprio e se tornar igualmente ambígua.

Por ser uma forma de conhecimento ligeiramente recente, a Teoria da Tradução passou a designar todo o saber relativo aos factos resultantes da tradução (historiografia da tradução e conceitos, principalmente). Porém, se a interpretarmos dialecticamente, isto é, à luz da Filosofia Analítica, compreenderemos que a Teoria da Tradução, nos termos monistas[1] como é apresentada, principalmente por inerência do lexema teoria, que é, em consonância com Maestro (2017, p.78) – «un concepto sintáctico, un sistema de proposiciones que derivan de una axiomática, es decir, de um sistema de conceptos» – se constituirá como um campo categorial confuso, sem um específico objecto de estudo definido.

O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa (2001, p.3543) define teoria como um conjunto de ideias, de conceitos, de princípios fundamentais organizados num sistema coerente e aplicados a um qualquer domínio científico.

Por conseguinte, a Teoria da Tradução será o conhecimento conceptual dos factos derivados da tradução e terá, como objecto de estudo, todos os acontecimentos decorrentes deste exercício, que consequentemente concorrerão para a elaboração de um inventário de conceitos ou para o estabelecimento de um sistema de teorias.

Ainda assim, tais factos requererão também uma inserção histórica, uma vez que acontecem efectivamente dentro de um contexto espácio-temporal, sugerindo, deste modo, uma Historiografia da Tradução, interessada em determinar a posição do fenómeno em observação (textos sagrados, textos literários, documentos, tradutores, leitores, etc.) em seu sistema histórico. A tradução da Bíblia Sagrada, por exemplo, foi

[1]Demonismo (do grego μόνος mónos, “sozinho, único”) é o nome dado às teorias filosóficas que defendem a unidade da realidade como um todo. A Teoria da Tradução, fruto da dimensão ontológica e semântica do sintagma teoria da tradução, não se deve ocupar de todos os fenómenos derivados dessa actividade.

[1]Demonismo (do grego μόνος mónos, “sozinho, único”) é o nome dado às teorias filosóficas que defendem a unidade da realidade como um todo. A Teoria da Tradução, fruto da dimensão ontológica e semântica do sintagma teoria da tradução, não se deve ocupar de todos os fenómenos derivados dessa actividade.

um marco impactante com implicações historicamente reconhecidas em todo o mundo, provocando alterações políticas, sociais e culturais. Quem deve explicar este facto é a Historiografia da Tradução em consonância com outros campos, e não propriamente a Teoria da Tradução, que para este caso serviria apenas de auxílio. A História precisa desenvolver-se através de um exercício dialéctico que recorre geralmente a uma pauta de conceitos.

No entanto, caberá à Crítica da Tradução analisar dialecticamente os procedimentos usados no processo da tradução, através de um estudo comparado, envolvendo a obra da língua de partida e a obra da língua de chegada. Crítica da Tradução será assim a análise contrastiva entre a obra escrita originalmente numa determinada língua e sua (s) respectiva (s) versão / versões. Com efeito, o crítico deverá ter domínio das duas línguas e consequentemente das duas culturas e, tratando-se de obra literária, deverá conhecer os princípios estéticos que orientam a actividade criadora do autor em questão, isto é, a sua poética.

Importa referir que as três disciplinas que aqui elencámos se complementam e são indissociáveis por imperativo dialéctico. Por esse motivo, vários teóricos ignoram ou têm dificuldade em identificá-las. Todavia, vamos reforçar aqui que é um facto que tais disciplinas evidenciam três maneiras diferentes de abordar a tradução enquanto fenómeno passível de ser observado e consequentemente estudado e que formam a Tradutologia como um amplo campo de estudo que tratará da teoria, descrição, historiografia e aplicação das traduções.

            A Tradutologia não só estuda a tradução como um processo de transferência entre línguas, mas também como comunicação intercultural, inscrevendo-se assim como uma macro-disciplina que palmilha nos mais diversos campos das Ciências Humanas, tais como a literatura comparada, os estudos culturais, a linguística, a filosofia, a semiótica, etc.; estendendo-se até à Ciência da Computação. Os Estudos de tradução geralmente são associados à Interpretação, embora os dois configurem campos conceptuais distintos.

A Tradutologia implica uma avaliação sistemática da tradução enquanto prática concreta e procura compreender o processo de transferência entre as mais diversas línguas e culturas.

Academia de Ciências de Lisboa. O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001). Lisboa:Verbo.

Martins, M. A. P. As Contribuições de André Lefevere e Lawrence Venuti para a Teoria da Tradução. Cadernos de Letras (UFRJ) n.27 – dez. 2010.http://www.letras.ufrj.br/

Maestro, J.Crítica de la Razón Literária, Editorial Academia del Hispanismo – 2017.

Passos, M. H. P. (2011). Da crítica genética à tradução literária: Uma interdisciplinaridade. São Paulo: Editora Horizonte.

Deixe o seu comentário

x