Texto de Apresentação do livro Os Funerais de Manguituka, o terrível bandido & outros mambos de Albino Carlos

Em Os Funerais de Manguituka, o terrível bandido & outros mambos, Albino Carlos apresenta-nos um conjunto de 11 contos que reflectem a sociedade angolana do pós-Independência, desde a guerra fratricida até a actualidade. Albino Carlos encontra nas suas reminiscências de petiz e nas suas vivências de homem adulto, assim como nas viagens que efectuou, a possibilidade de construir narrativas memoriativas. Nisso, a tendência descritivista de jornalista e as técnicas apuradas a partir das leituras de narrativas de conceito mágico e animista vão conformar a sua escrita, marcadamente insólita, ora apenas pela desautomatização da linguagem ora pela decifração dos enredos. Por imperativo de páginas, vamos situar a nossa abordagem em apenas três narrativas.

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            1- “Os Funerais de Manguituka, o Terrível Bandido” é um conto que emerge num contexto proverbial, ou seja, a trama gira em torno do provérbio “ûfa kiaíba, ufumanêsa á fúndi, dizia o povo: quem tem má morte, faz acautelar a
quem o enterra” (p.13). Com efeito, temos um protagonista, anti-herói, cuja morte por execução sumária e sabendo-se à partida quem a efectivara, em vez de gerar repúdio, consternação e comoção, constitui-se como um acto de libertação para uma comunidade que age contrariamente aos seus costumes, no que toca ao tratamento dado aos mortos; entretanto, justificado pelo já referido provérbio e pelas acções do protagonista, um psicopata que mesmo depois de morto continuaria a ser temido.

            A narrativa traz resquício de eventos que se dão com alguma regularidade no nosso quotidiano onde, por conta de uma educação fragilizada e da extrema pobreza que graça a maior parte das famílias, se cometem crimes hediondos por razões impensáveis, algumas das quais elencadas pelo narrador a propósito de uma das vítimas mortais de Manguituka:

O motivo da briga deles, uns diziam Massoxi caçumbulou mbora a sande de chouriço de Manguituka; outros sabulavam Manguituka queria roubar sapatilhas de Massoxi; uns avançavam era maka de bola,(pp.16-15)

Se tivermos em conta o actual quadro dos direitos humanos, o vilão (Manguituka) transformar-se-ia em vítima e entraríamos naquele conflito moral que se dá na nossa, em que o povo estima quando é abatido um marginal altamente perigoso. Dentro do quadro evocado, o texto configurar-se-ia como uma crítica às acções da polícia e uma das questões muito discutidas relativamente à suspeição de haver esquadrões da morte dentro da Polícia Nacional seria levantada. Por conseguinte, nesta convenção extrajudicial entre povo e polícia abrir-se-ia espaços para vaidade em relação à manutenção da ordem pública:

Se alguma alma caridosa se dignou a acompanhá-lo até à última morada, fizera-o forçadamente arregimentada pela polícia na sua sede de protagonismo mediático, cuidando que porque-porque e bonho-bonho e kapuete kamundanda e kabolokosso. (p.13)

O narrador não apresenta abertamente o autor do assassinato do anti-herói. Tem-se este entendimento pela conjuntura da obra e, sobretudo, pelo excerto abaixo descrito, em que a presença de um pelotão de fuzilamento do Esquadrão da Morte e um poder de fogo só à disposição da polícia nacional ou das forças armadas se evidenciam:

De modos que Manguituka teve uma morte digna de um verdadeiro filho da puta: colocado perante um improvisado pelotão de fuzilamento do Esquadrão da Morte, foi crivado por uma carga de fogo que dava para dizimar uma manada de elefantes. p.16

“Os Funerais de Manguituka, o Terrível Bandido” é a demonstração de como o que é designado como tradição se fossiliza na dita modernidade. Pela categoria da verosimilhança, este universo diegético aponta para Angola actual. No entanto, a religiosidade africana, baseada no princípio do vitalismo, como diria Placide Templs (2001), ou animismo, conforme em Harry Garuba, apesar do predomínio do racionalismo cartesiano de herança colonial, continua a predominar. Esta natureza híbrida da nossa sociedade também conforma a linguagem do texto em que podemos vislumbrar um entrelaçar de vozes que partem da linguagem poética, passando pela proverbial, até aos falares populares de indivíduos com o mesmo estatuto etário do autor, na medida em que tal socioleto não é transversal às gerações subsequentes.

            No âmbito das poéticas do insólito, a narrativa é estruturada conceptualmente dentro dos princípios da prosa animista. O assombro resulta da crença de que mesmo depois da morte continua haver a possibilidade de um morto ressurgir, e as coisas inanimadas podem ganhar vida por uma acção sobrenatural. Logo no início da narrativa o leitor é introduzido numa situação de perturbação da ordem natural:

No dia da morte de Manguituka, o terrível bandido, ninguém derramou uma lágrima, sequer. O céu gemia sob o peso de um enrodilhado de nuvens cinzentas figurando rostos de animais aterrorizados que olhavam para baixo. (p.13)

O cemitério, mais do que um lugar sagrado para honrar os entes queridos, por si só, já é um lugar onde atravessam muitas narrativas ligadas a actividades paranormais. É exactamente neste lugar onde o espaço psicológico e o espaço físico se confundem nas cabeças das personagens:

Naquela tarde solarenga, pesava sob o cemitério o cheiro acre da morte e o rumor dos golpes da pá; o coveiro e as escassas testemunhas, afogados no próprio medo, cada um mais receoso do que cada qual de que Manguituka acordasse e desatasse aos tiros e às catanadas, todos procuravam apagar da memória qualquer vestígio da lembrança de Manguituka nos sussurros secos das pazadas que compactavam o chão de terra da sua campa rasa, que quem tem má morte faz acautelar a pessoa que o enterra. (p.14)

no dia do enterro de Manguituka, o maldito, como sabemos, todas as pessoas presentes abandonaram o cemitério na agitação do kukulo kukulo, todos
nervosos na sua ânsia de bazar dali o quanto antes, ir ao cemitério é acordar os espíritos. (p.17)

            2- Contra a crise de valores que assola o nosso país, onde a função social das figuras concebidas como tradicionais vai-se degradando, no segundo conto, o autor traz a mítica figura de Cinganji, elemento cultural da etnia Ovimbundu associado à exaltação cultural, aos rituais de circuncisão e, por vezes, usado, não só no espaço rural onde o seu simbolismo é melhor preservado, como também nos meios urbanos, para a animação em eventos festivos de recepção de entidades protocolares e não só. Esta entidade faz parte das construções antropomórficas dos povos africanos. Está para os bakamas, entre os Ibindas. Ambas entidades costumavam a ser respeitadas e temidas por conta de um conjunto de narrativas mitológicas construídas à sua volta:

Quem não teme o Cinganji? Até o demónio faz o sinal de cruz, à tempestuosa aparição de tão ilustre mascarado. (p.22)

Albino Carlos faz uma descrição lírica sobre o impacto desta entidade nas comunidades, reconhecendo o sentido sacrossanto atribuído pela comunidade, mas sem deixar de lado a sua real visão, de um sujeito híbrido, de um racionalismo sincrético que emerge da cultura cartesiana, mas é profundamente impactado pela cultura bantu. No entanto, como vive nesta era de profunda dissolução do inconsciente animista, não deixa de reconhecer a dimensão mitológica do ser em questão. Neste sentido, tem a necessidade de se servir de um verso de Fernando Pessoa, extraído do poema de exaltação heróica “Ulisses”: “O mito é o nada que é tudo.

            Tal como “Ulisses”, Cinganji aqui aportou, uma entidade divina num corpo físico; podendo ser apenas um homem mascarado, aceitamo-lo como Cinganji e isto nos basta. “Assim a lenda se escorre. A entrar na realidade”, diria Fernando Pessoa.   Entretanto, é preciso esclarecer que este sentido sacrossanto não é percebido por todos e figuras como Cinganji, bakama, entre outras, no mundo contemporâneo, são alvos, não de profanação, porquanto, não se lhes reconhece mais essa dimensão divina, mas sim, de alguma violência simbólica devido o nosso fraco sentido de preservação cultural e a liquidez do mundo actual. Isto está associada à longa guerra civil e a indefinição de um ensino dominado pelo inconsciente colonial. Sobre a primeira razão, mudando fatalisticamente o modo de representação da narrativa, introduzido pela frase “Matem os vossos ídolos”, que Guns N´Roses usou em 1992, numa camisola abaixo da imagem de Jesus Cristo, numa tournée em Tokyo, o autor agrega à longa descrição do Cinganji, um evento de rusga durante a guerra civil em que um Cinganji é espancado por um soldado que o interpelara.      

            Em suma, o conto configura uma crítica a dessacralização das nossas figuras tradicionais, da queda da “Uanga”, enquanto instituição que regula comportamentos através do medo sobrenatural.

            3- Por fim, no nono conto, “O Pombo Branco”, como em “Uanga”, de Óscar Ribas, Albino Carlos revela alegoricamente o triunfo do amor sobre qualquer forma de maldade. Dois melhores amigos, Dyá-bufo e Binayaye, entram numa contenda após o sumiço misterioso de um pombo branco muito cobiçado. Como a trama é regida simbolicamente pelas leis da prosa animista, Binayaye é punido severamente por um cazumbi, de acordo com o diagnóstico do quimbanda , que o prescreveu como receita, entre outros elementos, “uma galinha preta, um galo branco, uma pomba preta, um pombo branco”.  O raríssimo pombo branco é o centro do problema e, num verdadeiro acto de altruísmo por parte de Dyá-bufo, vir-se-ia a constituir-se como a salvação.    

Tempels, Placide 2001, La philosophie bantoue, ed., de A. J. Smet

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