É comum em Angola muito se falar sobre o papel da Literatura na luta de libertação nacional. Porém, é preciso referir que todas as outras artes desempenharam o seu papel durante a luta de libertação nacional e, embora não sejam tão destacadas, contribuíram significativamente para que Angola alcançasse a independência, não só na frente cultural como também na política.
De acordo com Rodrigues(2011), artes performativas é a expressão em língua portuguesa que decorre da tradução de performingarts, a designação utilizada pelos falantes de língua inglesa para nomear o conjunto das “formas de actividades criativas que são apresentadas e interpretadas ante uma audiência tais como teatro, música ou dança, entre outras.”(Rodrigues, 2011, p.11)
A produção artística produzida por angolanos durante a fase de luta contra o regime colonial inscreve-se conceptualmente naquilo que José Carlos Venâncio designa por “Contextos periféricos de criação artística”. Um contexto periférico de criação artística pressupõe dialecticamente a existência de um outro contexto de criação artística, o qual seria o “Centro”, o lugar da consagração, o paradigmático, o excelente, um espaço estético construído pelo tecido político, cultural e social português. Visto deste modo, de uma forma geral, pode-se afirmar categoricamente que com a arte começa a Luta de Libertação Nacional.
Em termos historiográficos, é preciso referir que Portugal, até ao início da primeira guerra mundial (1914),não tinha o total domínio territorial de Angola. E quando o teve, em 1917, com o suicídio de Mandume yaNdemufayo, após vencerem os Kwanyamas nas batalhas de Môngua e de Mufilo, foi sempre um domínio relativo, pois, o seu propósito, mais económico do que outro, visava o domínio político, cultural e linguístico, não, entretanto, alcançado na sua plenitude. As provas materiais podem ser vistas até aos nossos dias: uma cultura não vencida, e nativos com língua materna sem ser a oficial.
Assumindo este domínio relativo, mas quase total, após a queda do último reino, dos vários que viriam formar territorial e culturalmente Angola, as artes continuaram a ser o principal meio de luta. A nossa tese sustenta-se no facto de Angola ter sido constituída como província ultramarinaem 1951 e apenas dez anos depois, em 1961, ter começado oficialmente a luta armada para a Libertação Nacional.
O contexto artístico, definido por Venâncio (2018) como “as relações, quer de natureza económica, quer de natureza estética, que se estabelecem entre os vários atores que contribuem para a realização e a afirmação da obra de arte, desde o momento da sua produção até ao do seu consumo ou fruição”, durante este processo de luta, é de algum policiamento por parte de quem detém o poder; de reclusão para a maioria oprimida que consome secretamente, e de apresentações esporádicas de artistas, com base em estratégias artísticas que procuram driblar o sistema, através de acções individuais e de pequenos grupos. O sentimento de revolta implica algum conhecimento e, nesta fase, a taxa de alfabetização era muitíssimo baixa.
O despertar para luta, através de um exercício de conscientização após a gradual aceitação da colonização por via de medidas de coerção psicológica e física, estava ainda em seu processo embrionário e a maturação seria o final da primeira metade década de 50 quando começam a surgir os movimentos de Libertação Nacional: em1954, nascia a FNLA(Frente Nacional de Libertação de Angola), antes, União das Populações do Norte de Angola e, depois, União das Populações de Angola (UPA) ; em 1956, nascia o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola); e, em 1966, a UNITA(União Nacional paraa Independência Total de Angola)
Se na Literatura, essa produção artística periférica, no início, estava alicerçada“em experiências sociais e estéticas que, por razões históricas e de dominação colonial, acabam por apresentar semelhanças, interconexões e compromissos com a realidade portuguesa e com as dos restantes países e regiões de colonização portuguesa”. (Venâncio, 2018), é nas artes performativas que os artistas gozavam de maior autonomia estética, cultural e linguística. Na música, por exemplo, ora cantando em línguas nacionais, ora servindo-se de fenômenos como a diglossia, ora driblando com palavras criadas no seio das comunidades e cujo significados os portugueses desconheciam.
De acordo com Marissa Moorman (2010)“A música, na Angola colonial, era escrita na dor, em privado, e torná-la pública era torná-la colectiva”. Geralmente as opções temáticas são motivadas pelo contexto. Nesta fase, o sofrimento era o tronco comum da maioria, até mesmo dos assimilados.“Entre meados dos anos 50 e o início dos 70, escritores de canções e músicos exploravam as limitações da vida sob o jugo colonial, enquanto punham as pessoas dançar”. No início dos anos 70, passando a haver alguma abertura, os espetáculos estavam ainda reservados aos mussesques“muitos foram até aos musseques para ouvir os Ngola Ritmos e outras bandas populares. ” (Ibidem)
Carlos Pimentel em entrevista a professora Marissa Moorman (2010) refere que,
a nossa música estava orientada para os problemas que sentíamos, o sofrimento que sentíamos. Mas não tocávamos porque éramos políticos, não, mas porque vivíamos aquela realidade e víamos que as pessoas que moravam nos musseques, viviam mal e porcamente. Então cantávamos sobre a nossa amargura em quimbundo e eles não sabiam. Até dizíamos mal deles, e eles não sabiam!
É preciso referir que a primeira intenção desses músicos não era política. O problema é que quando se refelete sobre a vida quotidiana por via da mensagem artística, mesmo em sistemas débeis do ponto de vista da educação, os regimes não conseguem ter o controle sobre o comportamento das massas. A mensagem artística, mesmo com os seus códigos, é libertadora, a sua compreensão é motivada pelas sensações. Caracterizando a música angolana nesta fase, diga-se que,
as canções que continham críticas sociais apontavam tanto à ordem colonial como à sociedade do musseque. Críticas ao alcoolismo, ao endividamento e às mulheres de moral duvidosa, apontavam indirectamente o dedo ao colonialismo mas também denotavam as lutas sobre os contornos morais da nação que nascia. Dado a maioria dos músicos e compositores serem homens jovens, as relações destes com as mulheres aparecem muitas vezes nas canções. As dinâmicas do género na vida social do musseque de Luanda, eram em parte construídas e negociadas nas letras. No final dos anos 60 e princípio dos 70, o público ouvia frequentemente letras que, em louvor ou condenação, falavam sobre as mulheres. Amores perdidos, achados, frustados e maculados foram o tema de centenas de canções. As histórias de amor também podiam conter críticias políticas, como na canção “Chofer de praça”. Ao mesmo tempo, o género romântico foi um elemento característico da música cosmopolita, pois a música estrangeira que tocava nas festas e na rádio era composta sobretudo por canções de amor.Marissa Moorman (2010)
Jorge Macedo(citado porMarissa Moorman, 2010), refere que a música dos Ngola Ritmos e o estilo que se lhe seguiu, tocado nos musseques tem uma forte influência dos sons latino-americanos. A questão que levantamos sobre o fazer arte e não fazer política tem a sua componente antética: fazer arte é fazer política. Quem faz arte assume sempre uma postura política. Ou se é do contra ou se é a favor. É-se a favor quando se escolhem temas que não chocam com o sistema. O grande artista é tendencialmente o do contra se a análise for ética; mas é preciso referir que esse jogo de antagonismo não define verdadeiramente o grande artista. O grande artista é quem, independentemente se o conteúdo semântico é a favor ou do contra, cumpre com o primeiro pressuposto da arte: fazer arte.
David Zé, autor do clássico “O Guerrilheiro”,iniciou a sua carreira artística em 1966. “Kadica Zé” foi o seu primeiro disco. Gravou um total de 14 singles e um LP em 1975, intitulado “MutudiUaUfolo (Viúva da Liberdade) ”.David Zé, foi um dos músicos míticos da revolução angolana. Com letras dotadas de um conteúdo de carácter muito politizado, defendia nas suas canções as ideias nacionalistas do MPLA de Agostinho Neto.[1].
Artur Nunes – de acordo com o jornalista António Rodrigues,quem conhece o quimbundo, diz que Artur Nunes “o cantou como ninguém, canções de amor, canções tristes de morte e desventura, canções revolucionárias, canções políticas – deixou 12 singles gravados entre 1972 e 1976 e mais dois temas para a colectânea Rebita 75. Entre eles, uma obra-prima que sobreviveu ao passar dos anos e se manteve moderna por obra e graça da sua intemporalidade. Tia e Belina são duas das suas músicas mais conhecidas.
Urbano de Castro é um dos nomes incontornáveis da música angolana no que toca à sua ligação com a luta anticolonial. Declaradamente, fazia questão de dizer em suas músicas “Urbanito, o Angolano”num contexto de policiamento constante.Foi preso, de acordo com Venâncio (2018), pela PIDE em 1970. “Depois de uma primeira tentativa falhada, conseguiu evadir-se para se juntar à guerrilha do MPLA. A canção “Angola liberté”, editada em single, é desta época, e teve um enorme efeito mobilizador nas bases das FAPLA”.
A arte é um instrumento ao serviço de todas as revoluções. O conflito dialectico entre música e política continuou mesmo com a mudança de regime e a independência nacional. O que esses três músicos aqui referidos têm em comum o suspeito desaparecimento por altura do fraccionismo.
[1]https://pt.wikipedia.org/wiki/David_Z%C3%A9
Onde há música geralmente há dança. Partindo desse pressuposto, a dança, embora tenha uma dimensão mais lúdica, perseguia os mesmos objectivos que a música, quanto mais não fosse para congregar as massas nos bailes. As músicas precisavam atingir o colectivo e os bailes eram o seu melhor espaço de divulgação.
Segundo Pedro Tomás (Petchu), bailarino, e Lito Graça, músico, os bailes em Angola eram organizados entre amigos que se definiam como “as turmas”. Nesses bailes dançavam ao som dos instrumentos como a dikanza (1), o ngoma (2), o apito, a gaieta (3) e o acordéon, que eram os mais usados na época nos ritmos como o semba, a rebita, a kazukuta, kabetula, os rumbas e muitos outros tocados nos anos 50/70.
Na era colonial, de acordo com Ana Clara Guerra Marques (2022, pp.232-233), “A nível do ensino, existiam diversos estúdios de professores particulares e uma única instituição com objectivos profissionalizantes: a Academia de Bailado de Luanda, criada em 1968 e dirigida por Maria Helena Coelho”. Trata-se de uma escola reconhecida pelo organismo de tutela internacional, R.A.D (Royal Academyof Dancing), frequentada apenas “pelos filhos de uma elite de ascedência europeia com possibilidades financeiras” (Guerra Marques, 2022, p.233)
O povo angolano resistia a hegemonia cultural europeia através da dança sobretudo com as danças Folclóricas, com grupos urbanos, “destinados essencialmente à sua apresentação em cerimónias oficiais e espectáculos de variedades, com objectivos meramente recreativos e turísticos. Criados ao gosto português, possuíam um valor patrimonial reduzido.
O Carnaval passa a ser então o principal espaço de resistência reivindicação cultural e até mesmo política,
evidenciando a simbiose entre os passos de origem africana e um visual (vestuário e adereços) que indiciava (e indicia ainda hoje) claramente a presença europeia. Nas suas performances, os integrantes dos grupos utilizavam contextos e personagens da história de Portugal, caricaturando a sociedade colonial, através das suas danças e representações.
Satumbo (2019, p.17) refere que o teatro, como forma de expressão literária sempre tem uma relação com a sociedade onde surgiu, é uma arte que se associa à história do homem e à própria história da comunicação humana
As lutas de resistência contra a opressão do colonizador português, em associação aos projectos utópicos de organização social e política do país fazem parte da produção teatral de Angola (2019, p.19)
O teatro convencional em Angola nasce em reação ao teatro português. As primeiras peças encenadas tinham um conteúdo religioso e as figuras representadas tinham de ser brancas. Para contrapor essa situação, surgiu, no seio dos angolanos funcionários públicos, a necessidade de se criar um grupo teatral com o obectivo de despertar as cosnciências dos menos esclarecidos, sobre a dominação colonial e a aculturação que o regime colonial imprimia. (pp.91-92)
Surgem grupos como Grupo Experimental de Teatro – Gexto, nos anos 50, à imagem do projecto brasileiro teatro experimental do negro. As suas peças mais famosas de acordo com foram O Panfleto, Auto de Nata e o Julgamento Popular. Esta última denunciava práticas de julgamento coloniais em que o réu não era ouvido, mas acabava condenado. A Peça O Panfleto trazia igualmente uma mensagem de intervenção social de apelo às populações sobre a necessidade do uso e distribuição dos panfletos em que deviam constar os abusos, maus-tratos, violência e exploração colonial.
Grupo Cultural Músico-Teatral Ngongo, em 1961, concentrando um número considerável de compositores, músicos, coreógrafos, actores, poetas, autores, declamadores, dançarinos, vocalistas tradicionais, etc, com apresentações em Angola e no exterior, consagrando-se como o melhor grupo de África em 1965. Tratavam temas ligados às vivências dos angolanos e adptavam algumas obras e encenaram peças como Praga- Uanga, Alembamento, Namoro no Sambinzanga, etc. (p.94)
A peça Alembamento(A Carta) foi uma adaptação feita pelo grupo de alguns dos capítulos do livro de Óscar Ribas, intitulado Uanga, um romance folclórico centrado no amor de Catarina e Joaquim, colocado em perigo primeiro por uma ex. namorada de Joaquim, e depois por um ambaquistachamado António Saebastião que, não sabendo ler uma carta, não diz a verdade, e faz entender que Joaquim morrera. Como solução para os problemas recorre-se a práticas sincréticas entre o catolicismo e o feiticismo.
Referências Bibliográficas
Bruno, F.(07 de Fevereiro de 2019).O papel da arte na independência angolana.https://profes.com.br/brunao/blog/o-papel-da-arte-na-independencia-angolana.
Moorman, M. (30, Setembro 2010). Música e lusotropicalismo na Luanda colonial tardia. (Rita H, trad.).https://www.buala.org/pt/palcos/musica-e-luso…
Rodrigues,A.(1 Junho 2014).Artur Nunes, músico angolano. https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/artur-nunes-musico-angolano
Rodrigues, M. P. F. (2011). As artes performativas no Funchal Oitocentista (1820-1913). [Dissertação de Mestrado, Universidade da Madeira] Repositório Institucional da Universidade.digituma.uma.pt/bitstream/10400.13/526/1/MestradoMariadaPazRodrigues.pdf.
Venâncio, J. C. (2018). Contextos periféricos de criação artística: o caso angolano. Centro de Estudo e Comunicação e Sociedade. https://journals.openedition.org/cs/591?lang=pt
Danças Africanas – Angola.https://dianaarassad.com.br/2014/10/24/dancas-africanas-angola/
Tomás,P. &Graça,L.(2002).Kazukuta e Kabetula em Revista Carnaval – A Maior Festa do Povo Angolano, de Roldão Ferreira( Governo da Província de Luanda, Direção Provincial da Cultura,ed.; 1ª Edição) p. 18-27 –
GUERRA-MARQUES, A. C. (2022). Dança cénica em Angola: 46 anos a percorrer um terreno instável entre um olhar desfocado sobre a tradição e um discurso retrógrado sobre a Modernidade. Revista Brasileira de Estudos em Dança, vol. 01, n. 01, p. 230-245.
Comentários (1)
Olá! Hélder Simbad,
Obrigado pelo trabalho elucidativo e imponente que fizeste neste artigo, bem haja. Temos que seguir e somar, aprendi isso consigo. O resto deixemos com os “deuses da sapiência” só que mesmo o Cristo de tão perfeito que foi e é não escapou a navalha do deuses, força. ????????????